terça-feira, 8 de dezembro de 2009

PASSAGEIRO (Ema Bessar Viana)

Sai da casca
Larga o todo-dia-tudo-igual
Pára para não encontrar-te em confusão
De ser balança-de-dois-pratos
E viver a pesar a pesar apesar
O mundo não é um armazém
A despeito do muito que há em comum
E tu não vales o que o gato enterra
E queres dar-te importância
Colocando-te acima da ordinária existência
Não és sequer conhecedor de ti mesmo
E vens pretensioso dizer que me conheces
Deixa-te, isto sim, afogar nas sujas águas do cocó
Ou pula de um alto edifício do centro da cidade

Não encontras explicações, bem o sei
Mas também não há quem as encontre
Embriaga-te o curso das coisas
O fluir de tudo, sempiterno
Enquanto a tua alma se dilacera
E o teu corpo se deteriora
Continua
O correr das águas dos rios
O mar monotonamente vem despejar-se
Nas areias tantas de tantas praias
Dia e noite se sucedem
Continua o riso o choro
O amor o ódio o belo o feio
Deus e o diabo
Continuam


domingo, 1 de novembro de 2009

UTILITARISMO (Ema Bessar Viana)

No mercado sócio-emotivo,
Exponho meu coração.
Leiloá-lo, eis seu uso.
Ele: torto parafuso.


-

domingo, 25 de outubro de 2009

BALADA DE UM ESQUISOFRÊNICO MEGALÔMANO (Ema Bessar Viana)


os astros me vendo passar
cochichavam
interjectivos

"é aquele
aquele lá
pretensão a dele
querer irradiar luz semelhante à nossa
coitado pobre coitado"

também as trevas me vendo passar
"obscuro
fogo-fátuo

sim 
mas
tão pretensioso
pensa o vazio e é tão cheio
não é dos nossos"

solucionar-me no intermédio
buscando sempre
equilibar-me entre

I M P O S S Í V E I S


-

AMEAÇA (Ema Bessar Viana)

Não! Já não sei se mereço
Tanto tudo o que a ti peço
Mas aqui e agora confesso
Não me faças do vão sonho
Cessar o curso risonho
Que sou capaz e te esqueço

-

FILHO (Ema Bessar Viana)

as palavras falam do inessencial.
não há porquê nem onde, quando ou como.
é no atemporal espaço horizontal dos abraços,
no sem-razão,
onde todo o nosso ser
objetualizável,
que sou você, meu filho,
carne estrangeira,
e habito o não-ser
que vai de mim para você.

-

BEIJO (Ema Bessar Viana)

que doce beijo 
em ti eu vejo 
vejo tantas coisas em ti 
o maior ensejo 
de todo o meu desejo 
vir-se a cumprir 
até vejo em ti
-

sábado, 24 de outubro de 2009

CONSCIÊNCIA (Ema Bessar Viana)


Saber queria de que modo se adensa
no dentro informe de toda gente
coisa assim concreta e tão presente
que é o pensamento que a si se pensa;

o pensamento que de si é o reflexo,
que reintegra do vivido a cadena,
e que incontinenti nos condena
ao fora de nós mesmos já sem nexo;

o pensamento que ordena a persona,
que estanca a existência fugidia
e faz a identidade vir à tona,

mas que ato contínuo nos exilia
em terreno ermo e nos abandona
ser sem Ser, tão-só devir... Eu queria.



sábado, 3 de outubro de 2009

PROCURA (Ema Bessar Viana)

Súbito toma-me desejo insano
De te ver. E a tua, minh'alma reclama.
Quer te ter aqui quem a ti tanto ama,
Quem contigo sonha há já um ano.

Se tanto amar, amor, não for humano,
A mim, destruir-me há de ardente chama.
Rogo-te: escuta e atende a voz que clama,
Retém-me c'os olhos o olhar cigano.

Meu sonho, deixa-o fluir lentamente,
Permita-me que siga a procurar-te,
Hoje e sempre, sim, incansavelmente,

Em todos os lugares, por toda parte.
E um dia quem sabe esta busca insistente
Finde e queira Deus que por encontrar-te.

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FILHA (Ema Bessar Viana)

Coriscaste no negrume de um céu,
Promessa de luz a romper o véu
Das noites fundas que a vida era
Naquela tarda baça primavera.

Crescendo teu brilho foi e por encanto
Tomou os espaços todos. Entretanto,
Havia negro um ponto resistente
A quem contra a barra dele tente.

Então sem muito empenho o presente
Daquele que era já um quase-incréu,
Foste entretecendo suavemente

E num hoje similar a um antecéu
Coabitamos sem o renitente
Negrume por força do teu cinzel.

-

CÁRCERE (Ema Bessar Viana)

Crer no etéreo, em fadas, ninfas e gnomos,
Na dura mão do inexorável fado,
Que o caminho já nos deu... Certo ou errado?
Toda dúvida de que feito fomos.

Nos deuses todos do Olimpo onde pomos
O nosso sobe-e-desce projetado.
E mais: crer um dia ver saciado
O desejo de infinito que hoje somos.

Crer na nobre medieval missão
E nos cavaleiros do Grande Rei
Que viviam o Graal a procurar.

Ver-me preferia nesta ilusão
Enfim consciente de que escapei
Do exíguo cárcere de pensar.

-

Caetano Veloso (Phono 73)




Um bom exemplo do que é texto sincrético, para cuja elaboração concorre um cojunto de linguagens que se imbricam de modo a criar um efeito de sentido geral, que dá unidade ao todo.

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quinta-feira, 17 de setembro de 2009

LÓGICA INFANTIL (Ema Bessar Viana)

- hoje é amanhã!
- hoje é amanhã!
- hoje é amanhã!
Bia cobra a promessa de ontem.

- amanhã foi ontem!
- amanhã foi ontem!
- amanhã foi ontem!
Alice, a de anteontem.


quarta-feira, 2 de setembro de 2009

ESTAÇÕES (Ema Bessar Viana)

deram em nada as primaveras que alegrei
as alegrias primaverarei
para depois outonarem-se
virão inverno e verão
e outras alegrias primaveradas
hão de outornar-se
são as estações do meu ser temporal
sucedem-se sem descanso
nos anos vivicíclicos

POEMA DES-CARTESIANO (Ema Bessar Viana)

a verdade é uma só 
e quem a disse não mentiu 
é o homem em si um nó 
de dúvidas que a dúvidas se uniu
triturado em pedra mó

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GEOMETRIA DO MERGULHO (Ema Bessar Viana)

a

v
e
r
t
i
c
a
l
i
d
a
d
e


d
a


j
a
n
e
l
a


c
o
n
v
i
d
o
u
-
o
a horizontar-se
.

domingo, 30 de agosto de 2009

TROCA (Ema Bessar Viana)

os homens que a cercam
trazem a flor do sexo
em franca exposição
prometem-lhe
algum regalo
amor etéreo
devoção
em troca
só lhe dão
solidão



segunda-feira, 20 de julho de 2009

-

A arte, de um modo geral, é equilíbrio de excessos e insuficiências. O artista do "mais" opera recessivamente com o "menos", ao passo que o do "menos" presta contas ao "mais". E ambos buscam o efeito sensível da modulação destes contrários. O grande artista cria equilíbrios instáveis que tensionam excessos e insuficiências de toda ordem e produzem "buracos no não" gerando os possíveis impossíveis e os impossíveis possíveis. O grande artista fura o cerco e nos conduz sem dizer para onde nem responder por quê. O grande artista se funda a si mesmo por seu fazer, e este nos co(n)funda na fruição que em nós nos inaugura.

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sábado, 18 de julho de 2009

PAVLOVIANA (José Paulo Paes)

a comida

a sineta

a saliva

a sineta

a saliva

a saliva

a saliva

a saliva

a saliva


o mistério

o rito

a igreja

o rito

a igreja

a igreja

a igreja

a igreja

a igreja


a revolta

a doutrina

o partido

a doutrina

o partido

o partido

o partido

o partido

o partido


a emoção

a idéia

a palavra

a idéia

a palavra

a palavra

a palavra

a palavra

a palavra



Um impossível possível: em quatro segmentos, cada qual composto por três "estrofes" de três versos, com sintagmas nominais simples (artigo + nome substantivo), o autor fala dos automatismos (reflexos condicionados) nas dimensões física, espiritual, política e estética.


Guimarães Rosa (o pensador e o artista)

O poder de criar realidades pela linguagem e/ou o pressuposto de existência na lógica exemplarmente evidencidados num trecho do prefácio de Tutaméia.

Siga-se, para ver, o conhecidíssimo figurante, que anda pela rua, empurrando sua corrocinha de pão, quando alguém lhe grita: - "
Manuel, corre a Niterói, tua mulher está feito louca, tua casa está pegando fogo!..." Larga o herói a carrocinha, corre, voa, vai, toma a barca, atravessa a Baía quase... e exclama: "- Que diabo! eu não me chamo Manuel, não moro em Niterói, não sou casado e não tenho casa...".

segunda-feira, 13 de julho de 2009

TAMBOR (Ema Bessar Viana)

a média não anuncia
mas os tambores renunciam
aos excessos da alegria

o tambor já foi triste
pulsação
falar percussivo do coração

já foi banzo
cantou tristezas e alegrias
falou com deuses
festejou chorou esqueceu

o tambor quer
as antigas suas linguagens
quer sair
do popular tambor pra pular para parolar
noutras linguagens
do percussivo coração


CALEIDOSCÓPIO (Ema Bessar Viana)

fragmentei-me em gostares
meu coração dividido
caleidoscopizou-se ainda mais
meus pais têm um naco
outro anda em meu peito
pedaços nas mãos de amigos
amores outros detêm
grande parte porém
putrefaz-se morta nas ruas


LUA E CHÃO (Ema Bessar Viana)

Para os coiotes
olhos postos na lua
passeava sonhos fabulosos
viagens intergalácticas
suaves voos de pássaros
braços de bem-amada
a inteiro envolver-me
num acalanto sem par

súbito
os olhos me vão
da lua ao chão
o pé direito
tenho-o imerso
em ignorada substância
de amarelo aspecto

pisei no cocô
pisei no cocô
e não sei que fazer
água por perto não vejo
não vejo pano ou sabão
com que me possa limpar

pisei no cocô
enquanto sonhava
pisei no cocô
e estava descalço
pisei no cocô
e não sei que fazer

amiga me diga
amputo este pé
ou pisando na merda
aprendo a viver?


FARTA POESIA (Ema Bessar Viana)

farta poesia
no poema
brincadeiras de pensar
sinestesias
metaforizar
maresia
dói e corrói
o ferro
de todo dia
perartice do poema
farta poesia


domingo, 17 de maio de 2009

IMIGRAÇÃO (Ema Bessar Viana)

Vez no longe sudeste
O homem antes nordeste
Em desaprumo em desatino
Vai viver sudestino.

CIRURGÊNCIA (Ema Bessar Viana)

À sombra de fartos e generosos galhos
De uma frondosa mangueira
Menino e menina brincavam
Brincadeira de faz-de-conta

Ele cuidava diligente
Da menina paciente
Enquanto 
Fármacos penetrantes
Recendiam
No preparo da hirta cânula
E da mucosa vaporosa
Para a infusão

Do êxtase do tato
No ato do regalo
Do conhecerem-se
De repente
Despertaram

Adultos intervieram em delicada cirurgência
Eram deles os pais
E sem bem saber por quê
Menino e menina levaram
Uma sova de não esquecer jamais

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BURACO NEGRO (Ema Bessar Viana)

foi tudo tão sem fundo
que o oco do mundo
nos tragou

foi todo tão luminoso
o caos gozoso
que brilhamos

foi tão oco o todo breu
que o brilho esmaeceu
e nos insulamos

foi enfim tudo tão sem fim
que agora em mim
é sempre amanheceu

-

SONETO FALHO ou SÓ NOTO DOIS QUARTETOS (Ema Bessar Viana)

não atino a que deva atribuir
o excêntrico gosto por sonetar
mas sei que esta forma particular
trasmuta sublimando o que vivi

dá-lhe o acabamento necessário
extrai do vivido a forma pura
assim como o escultor a escultura
faz nascer do material precário.

-

sexta-feira, 3 de abril de 2009

ALFA & ÔMEGA (Dimas Carvalho)

A diferença toda está aqui:
O homem vivo é caveira que chora,
O homem morto é caveira que ri.


segunda-feira, 23 de março de 2009

SONETO MONOSSILÁBICO (Mário Quintana)

Quem
Te

Bem

Sem
Que

Nem

Um
Ai:
Pum.

Cai.
Ah!
Ah!


sexta-feira, 20 de março de 2009

O QUERERES (Caetano Veloso)

onde queres revólver sou coqueiro

e onde queres dinheiro sou paixão

onde queres descanso sou desejo

e onde sou desejo queres não

e onde não queres nada nada falta

e onde voas bem alta eu sou o chão

e onde pisas o chão minha alma salta

e ganha liberdade na amplidão


onde queres família sou maluco

e onde queres romântico, burguês

onde queres leblon sou pernambuco

e onde queres eunuco, garanhão

e onde queres o sim e o não, talvez

e onde vês eu não vislumbro razão

onde queres o lobo eu sou o irmão

e onde queres cowboy eu sou chinês


ah! bruta flor do querer

ah! bruta flor bruta flor


onde queres o ato eu sou o espírito

e onde queres ternura eu sou tesão

onde queres o livre, decassílabo

e onde buscas o anjo sou mulher

onde queres prazer sou o que dói

e onde queres tortura, mansidão

onde queres um lar revolução

e onde queres bandido sou herói


eu queria querer-te e amar o amor

construir-nos dulcíssima prisão

e encontrar a mais justa adequação

tudo métrica e rima e nunca dor

mas a vida é real e de viés

e que cilada o amor me armou

eu te quero (e não queres) como sou

não te quero (e não queres) como és


ah! bruta flor do querer

ah! bruta flor bruta flor


onde queres comício, flipper-vídeo

e onde queres romance, rock’n’roll

onde queres a lua eu sou o sol

onde a pura natura, o inseticídio

e onde queres mistério eu sou a luz

onde queres um canto, o mundo inteiro

onde queres quaresma, fevereiro

e onde queres coqueiro sou obus


o quereres e o estares sempre a fim

do que em mim é de mim tão desigual

faz-me querer-te bem, querer-te mal

bem a ti, mal ao quereres assim

infinitivamente pessoal

e eu querendo querer-te sem ter fim

e, querendo-te, aprender o total

do querer que há e do que nãoem mim.